Geral – 06/04/2013 – 18:04
Uma cartilha com ensinamentos para soldados brasileiros publicada no período da Segunda Guerra, uma gramática da língua portuguesa do ano de 1933 e um livro com memórias da cidade do Rio de Janeiro datado de 1955 parecem ter pouco em comum. No entanto, eles ocupam lugares próximos na mesma estante porque um dia tiveram o mesmo fim: foram descartados por alguém.
Desde 1985, a Coleta Seletiva do Bairro de São Francisco separa e dá um destino adequado aos materiais recicláveis provenientes do lixo dos moradores. Mas entre plástico, metal, vidro e papel, o projeto teve que criar outra categoria para a triagem, a de objetos culturais, que começaram a aparecer em grande número.
— Percebemos uma quantidade significativa de livros, revistas, cartões-postais, e pedimos que os recicladores separassem tudo. Os resultados foram surpreendentes — explica o professor Emílio Eigenheer, coordenador da coleta seletiva.
Os itens mais interessantes, raros, ou com potencial de utilidade para pesquisadores deram origem ao projeto Resíduos e Memória. Atualmente, três das 14 coleções do Centro de Memória Fluminense, que fica na Biblioteca Central do campus Gragoatá da UFF, são provenientes do projeto. Juntas, elas somam mais de 5.000 itens.
Uma delas leva o nome de Emílio Eigenheer e tem mais de 3.000 exemplares, provenientes da coleta seletiva. Mas de acordo com o chefe do Centro de Memória, Antônio Marones, itens novos chegam toda semana. As outras duas, batizadas com os nomes de seus antigos donos: Nóbrega de Siqueira e Lourenço de Araújo, corriam o risco de serem perdidas, não fosse a acolhida do projeto.
A coleção Nóbrega de Siqueira, com 756 exemplares, foi doada ao Resíduos e Memória por iniciativa da família, após a morte do proprietário. A Lourenço de Araújo estava sem destino e quase foi descartada.
Uma vizinha da família, que fazia parte da coleta seletiva, ficou sabendo que um grande acervo de livros estava sem finalidade, aguardando alguém que pudesse levá-los para outro lugar ou jogá-los fora. Ela avisou Eigenheer, e os recicladores do projeto conversaram com a família para acertar a doação dos 1.013 exemplares de Araújo, que passaram a integrar o acervo do Centro de Memória.
De acordo com Eigenheer, as pessoas costumam descartar livros motivadas, principalmente, pela mudança de residência ou após a morte de um familiar.
— Existem pequenos acervos anônimos que podem ter 40, 50 ou até cem livros, e, às vezes, a família não vê sentido em guardar estas obras — explica.
Mas aquilo que não tem mais valor para a família pode ser utilizado com outros fins. Marones explica que, além da curiosidade que alguns objetos antigos despertam, é grande a procura de pesquisadores por obras que vieram da coleta seletiva.
— Estamos mantendo e preservando a História do Brasil e do Estado do Rio de Janeiro aqui no centro — diz Marones.
Até quarta-feira, os objetos mais raros obtidos pelo projeto estão em exposição na Biblioteca Nacional, no Rio. São 72 peças, entre moedas, fotografias, telegramas e documentos iconográficos importantes que pertencem ao acervo do Resíduos e Memória.
PROJETO MODELO
De jornalistas a pesquisadores, muitos se interessam pelo resgate de materiais culturais da coleta seletiva. A história bem-sucedida do Resíduos e Memória inspira experiências que, antes, não eram imaginadas por aqueles que conhecem o projeto pela primeira vez.
— Quase sempre as pessoas não olham para o mundo do lixo — afirma Eigenheer.
Ele conta que, uma vez, proferiu uma palestra que foi assistida com atenção por uma bibliotecária. Após a apresentação, ela resolveu ficar atenta às lixeiras por onde passava, na esperança de achar algo de valor.
A investida deu certo, e a bibliotecária encontrou livros de direito importantes, editados no século XIX. No entanto, Eigenheer esclarece que nem todo lixo tem objetos de valor, e nem tudo o que é velho é raridade.
Para ele, o importante é pensar em livros, peças e objetos que podem ser usados para a pesquisa, e na preservação da memória familiar, regional e nacional. Não são todos os itens que caem nas mãos dos recicladores que entram nesta classificação.
— Os recicladores já sabem que revistas recentes, por exemplo, não valem tanto para nós. Além disso, eles conseguem identificar que os cartões em preto e branco são mais interessantes do que os coloridos — diz o coordenador da coleta.
Alguns best-sellers e romances são encaminhados para sebos, e os livros que não podem ser reaproveitados são descartados como papel.
A Coleta Seletiva do Bairro de São Francisco é um projeto realizado em parceria com o Centro Comunitário do bairro e a Universidade Federal Fluminense, por meio do programa de pós-graduação em Sistemas de Gestão. Há dois meses, o projeto ganhou a ajuda de caminhões da Companhia de Limpeza Urbana de Niterói porque os pequenos tratores que eram utilizados para o transporte da coleta já enfrentavam o trânsito com dificuldade.
Apesar da experiência bem-sucedida, Eigenheer não tem a intenção de expandir o projeto a outras regiões da cidade ou do estado, mas pretende servir de exemplo:
— A nossa ideia não é substituir iniciativas de outros grupos. O objetivo é que as pessoas conheçam o trabalho e tentem multiplicá-lo.
Retirar cultura do lixo é uma tarefa que precisa de cuidado e dedicação.
— É necessário um trabalho metódico envolvendo pessoas que tenham interesse pela bibliofilia. É como se você fosse um salvador daquilo que está ameaçado, e aí você recupera aquilo para um espaço mais nobre — ensina Eigenheer.
Números
2.406 títulos Do Centro de Memória Fluminense vieram da coleta seletiva. O total vem da última contagem, feita em 2012.
5.239 exemplares são provenientes do projeto.
72 peças são do acervo do Resíduos e Memória estão em exposição na Biblioteca Nacional, no Rio.
Fonte: Extra